quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Deus do Labirinto- Sete Paradoxos de Herbert Quain


Apiedo-me da alma de Herbert Quain, de cujo romance April March, escrito em 1936, nenhuma recordação restou-me que não fosse a tentativa fracassada de afrontá-lo. À guisa de lhe oferecer uma pequena nota de indulgência necrológica, como quisera o maior de seus asseclas, descobri que não se permanece imune à presença de Herbert Quain quando se erra pelas alamedas escuras de Roscommon, cidade que o viu falecer, e para onde acorri à procura de alguns manuscritos do escritor.


No entanto, e sem que pudesse pressentir, verifiquei (decepcionado) que não eram muitos os volumes da literatura quainiana que se podiam divisar na maior biblioteca daquela cidade, um enorme edifício à beira do Rio Shannon, ladeado por construções tombadas pelo patrimônio histórico irlandês. Cedo, não me foi difícil presumir que nem mesmo o hálito frio e ancestral das ruelas acidentadas de Roscommon oferecia o justo conforto à alma experimental do velho Quain: ali, mesmo depois de sua morte fatídica e precoce, sepultado sem maiores insígnias, ele jazia estrangeiro.


Que eu desistisse, pois a obra literária de Herbert Quain se havia fragmentado de tal modo que sequer os antiquários tradicionais da Província de Connacht noticiavam a respeito, disse-me o livreiro da Rua Elmo, procurando me demover da empresa de encontrar os tais manuscritos, já objetos de minha obstinação. Sem saber exatamente o porquê, ocorreu-me a apavorante idéia de que o autor de Statements havia caído no mais absoluto e horrendo esquecimento.


Por um capricho da fortuna, a surpresa me assaltou em County Westmeath, na vizinha província de Leinster, onde um afamado bibliófilo cego que se dizia amigo de Quain, mostrou-me o que eu apenas havia escutado existir: Os sete aforismos da história – texto cujos desdobramentos assinalariam a resposta de Herbert Quain a um de seus críticos mais severos, que se havia ofendido com um comentário seu sobre a “história da arte”, proferido em ocasião inoportuna.


Temendo que os aforismos não resistissem ao próprio esquecimento de seu criador, ou porque não mais pudesse suportar o peso de sua memória, pediu-me o bibliófilo que eu o publicasse, retribuindo sua gratidão com um volume de antiquário escrito nos fins do Século XIX. Eis o texto de Quain:

(Os Sete Aforismos da História - Prolegômenos para um Romance Regressivo, por Herbert Quain)



i. O não-laboratório do historiador é um alcoviteiro, exige um caso de amor secreto entre conceito e evidência, um amasiar-se, um estranho conúbio com as fontes.


ii. O historiador é um nômade agrilhoado.

iii. É dotada de uma estranha gaguez a fala do historiador; ela se deixa tropeçar em antigos pedaços de papel, em fragmentos de gestos, sinais, sintomas que sobrevivem em seu mata-borrão antes de serem sepultados no cemitério da escrita historiográfica.


iv. O gesto do historiador funda uma língua que não se expressa apenas por um vocabulário que lhe seja peculiar, mas por uma sintaxe que o exila das certezas permanentes, que fabrica seu conhecimento menos pela blindagem ou canonicidade de seus apetrechos de historiador do que pela violência que encerra a interpretação de que faz uso.


v. É fundado na violência o conhecimento histórico, pois os cortes que operam seus conceitos eliminam e excluem na proporção em que coligem, colecionam os materiais violentados pela interpretação.


vi. É mesmo esquizofrênica essa relação, pois tanto os conceitos esperam por certos materiais que os legitimem como também se deixam pedir por eles, seja para sagrar ou eliminar as hipóteses de historiador, seja para transformar ou se deixar transformar em novos conceitos.


vii. Não parece haver inocência no gesto do historiador



Todas as advertências recaiam sobre os leitores e vulgarizadores de Herbert Quain, que não admitia haver disciplina inferior à história. Foi necessária uma leitura a contrapelo de uma das oito narrativas de Statements para que eu compreendesse a heterodoxia de seus livros-jogos. O que não pude calcular foi a estranha ironia a que me conduziu o cego bibliófilo, por quem fui agraciado com um livro de 1897, cuja página 215 me fez enxergar o que o velho escritor irlandês queria mesmo dizer com "romance regressivo"...


terça-feira, 23 de outubro de 2007

Parte III

- Luz, câmera, ação!

- Vítor! – Ao chamar desta, eis que surge em cena um garboso mancebo de vestes distintas o que; conservando entre seus dedos destros um charuto apoucado, a testa franzindo em circunspeta atenção, a leveza dos movimentos no girar de sua cadeira executiva, a voz aveludada e grave; personificava a elegância daquela figura. Era a personagem de Armando, Vítor Gomes, um jovem empresário que, dadas suas aparições em cena, sempre causava maiores suspiros nas telespectadoras daquela novela, e conseqüente audiência. Um homem de caráter estimado pelos bons, e leal àqueles que consorciam de sua amizade. Neste momento contracenava com a protagonista da novela, Eulália, uma doce e bela mulher que perdera cedo o pai, e destarte assumia a presidência da empresa a qual Armando... melhor dizendo, Vítor era sócio majoritário.

- Eulália. Chamei você aqui para lhe inteirar de algumas pautas relativas à reunião de agora à tarde com os nossos principais acionistas. Quero lhe perfazer dos perfis de cada um para que possas centrar seu discurso de posse.

Eulália além de sócia de Vítor era muito antes amante, coisa que tentavam esconder aos olhos de todos, não tendo maior fortuna com Regina, irmã caçula de Eulália e mulher de Vítor. Regina caracterizava a vilã da história, se fazia não aperceber o romance adúltero do marido com a irmã, e conspirava sempre à surdina contra a felicidade de seus desafetos.

O relógio da igreja badalava dezoito horas daquela quinta-feira, e Armando já havia terminado as gravações desta semana, estava pronto para viajar na sexta, voltaria aos estúdios da RTA (Rede Televisiva de Altaneira) na terça para completar as cenas finais da novela. Encaminhava-se ao seu Rolls-Royce quando viu Eva se chegar.

- Cada vez que lhe vejo, surpreendo-me ainda mais com tamanha que é sua beleza, minha Eva.

- Armando... nunca se ausenta dessa insígnia de galanteador? Apenada será a pobre criatura que lhe vier desposar! - E Eva falava por conhecimento de causa, pois sabia das inúmeras aventuras do irmão, e das pobres donzelas que este desonrara, dentre as quais estava Bruna, amiga de Eva que namorou Armando na adolescência, vindo a ser traída por este aos olhos de Eva.

- Ora minha irmã, não é minha a culpa de teres se transformado nesta moldura que me alude muito à inocente e pura imagem da Eva de Ana Pardo. Mas me diga a que se deve tão ilustre presença?

- Falar sobre nosso pai. Achei estranha a semelhança das mortes que aqui ocorreram.

- Não entendi. Mortes semelhantes? Falas do senhor Fernandes também?

- Sim. Assim como nosso pai, ele tinha 45 anos e gozava de excelente saúde, embora tenha vindo a falecer de um infarto, mesmo sem um histórico de problemas cardíacos na família. Não tenho certeza, mas creio que exista alguma relação direta.

- Minha irmã, você está querendo me dizer que nosso pai possa ter sido assassinado, e por algum maníaco serial?

- Como lhe disse, não tenho certeza de nada, acredito em assassinato, mas preciso investigar. Vais viajar novamente para aquele lugar que nunca revelas?

- Questão de privacidade. Sabe que se souberem onde estou não me deixarão em paz; é autógrafo aqui, perguntas sobre o fim da novela ali, senhoras mau cheirosas querendo me abraçar... é minha irmã, a boa fortuna também tem suas desvantagens.

Já era noite, a fria e densa névoa ofuscava as ruas de Altaneira, e as luminárias públicas fincadas no pavimento de pedras regulares, o desenho de suas construções, em tudo se fazia presente o modelo arquitetônico vitoriano que fôra trazido neste período pelo colonizador inglês. Na esquina em que cruzavam a Rua 15 com a Avenida do Rio, despontava uma esdrúxula e esquelética silhueta, estava agachada e desnuda, não se podia saber se era homem ou mulher, pois a névoa lhe dava guarita, corrompendo a visão melhor de sua sexualidade, mas se não era uma mulher, usava uma longa peruca, suas mãos de alongado comprimento denunciavam ser esta entidade de elevada estatura. Um estampido ecoa quebrando o silêncio da noite, a criatura corre desengonçada em direção à ponte. Se era realmente alta não deixava transparecer, já que apresentava a coluna arqueada e uma escoliose deveras acentuada, e correndo parecia sempre estar agachada. Outros dois estampidos maiores de espingarda, e agora se podia vê-la um pouco melhor, pois a iluminação da ponte desvelara parcialmente a criatura, foi quando alguns moradores que a perseguiam puderam vislumbrar.


quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Parte II

Jacinto era o filho mais velho de seu Batista, e também o mais apegado ao pai, que desde logo tratou de colocar a loja da família aos cuidados do filho. Jacinto aprendeu tudo com o pai; balanço, comerciar com os fornecedores, o marketing de seus produtos, sempre ressaltando o preço mais em conta da região... enfim, seu Batista era só orgulho com Jacinto.

Certa vez, seu Batista se escondera, dizendo a Jacinto que iria ao banheiro e que este cuidasse da loja até que voltasse, entra neste momento um senhor carrancudo e muito esnobe, seu Fernandes – isso mesmo, o que falecera outrora nesta história – destratava quem pudesse ver, e não era novidade desfazer das pessoas usando toda sua arrogância.

- Quero comprar a loja! Quanto é? – Seu Fernandes encenava abrir a capanga de couro preta, enquanto gozava da cara do garoto, que de pronto lhe respondeu:

- Desculpe moço, mas a loja não está à venda. Não colocamos nenhum anúncio para tal. Nossa loja é a mais completa da região, e é preciso muitas posses para comprá-la, se o senhor tiver algum dia esse dinheiro, tratarei de lhe informar da venda. Enquanto Fernandes ficara catatônico diante do prodigioso e atrevido garoto, Batista dava socos na parede de alegria ao ver seu filho de 11 anos desbancar o homem mais boçal da cidade, coisa que sempre quis fazer, mas sua política de trato ao cliente o impedia. Vendo sair o furioso Fernandes, Batista sai da “toca” e abraça o filho como quem erguia a taça Jules Rimet. No momento em que abria a loja naquela manhã, Jacinto lembrava com lágrimas nos olhos desse momento com seu pai que falecera no dia anterior.

Ele não aceitava a idéia do pai vir a falecer tão cedo, 45 anos, e de infarto, um homem que dificilmente era acometido por qualquer enfermidade, pois sempre se preocupou com a alimentação; nada de gorduras, comidas oleosas ou sal além da conta, e era de praxe um rachinha de futebol nos fins de semana para manter o vigor físico. Talvez por trocar tiros com algum delinqüente que viesse a afanar Umatinga, ou deglutir inadvertidamente alguma droga que corrompesse sua saúde, qualquer outra "causa mortis" poderia ser mais assimilável na cabeça de Jacinto que infarto. Não... era demais para um filho que sempre invejara a saúde do pai. A mãe já tinha ido também muito cedo, um acidente bestial que envolveu o filho de Fernandes, Osvaldo Júnior. Este vinha bêbado em alta velocidade em seu pick-up no centro da cidade e acabou por atingir dona Marta, esta ainda minguou forças para se despedir do marido e dos filhos no hospital antes do seu último suspiro.

JR, como era conhecido, fôra condenado, a pena não tão severa, apenas ajudar na limpeza das ruas da cidade pela manhã, quando ainda não se via cidadão algum trafegar, e por tanto, livre de maior desonra. O advogado argumentou que: “O jovem não se encontrava bêbado, pois tão logo houve o acidente, foi consciente, e incontinenti prestou socorro à vítima lhe chamando ambulância, e isto mostrava não só a sobriedade do rapaz, bem como sua boa índole, sem a qual não teria prestado socorro à dona Marta, que Deus a tenha”. Todas aquelas palavras eram insultos à imagem de Marta, e amiudado o coração, seu Batista recebeu o resultado da condenação por meio de Eva, pois não teve forças para seguir presente no julgamento. Todos ali sabiam que tão logo ocorreu o acidente, JR se encarregou de telefonar para o pai, que antes de qualquer outra atitude, tratou de evocar os serviços de seu advogado, Dr. Valmir, este foi quem desdobrou todas as questões lícitas e ilícitas para conduzir o caso de homicídio doloso eventual à um simples acidente de trânsito.

Eva veio conversar com Jacinto, dizendo-lhe que Fernandes havia falecido naquela manhã.

- Não tenho certeza meu irmão, mas creio que a morte de Fernandes ainda não está totalmente esclarecida... - Eva era uma garota que se destacava não só por sua beleza, mais ainda era de uma inteligência ímpar, o que tornara comum lhe prestarem honrarias por suas atuações frente aos casos competentes à polícia de Altaneira, o que não causava muito gosto a seu Batista, ainda não lhe digeria bem a idéia da filha lidar com algo tão perigoso como a polícia, mas que a apoiava em tudo, e sempre lhe perguntava sobre os casos, de como ela conseguia resolvê-los, ficava feliz pela astúcia da filha, que era acima da média, ao fim lhe dava os parabéns, mas nunca se esquecia do “tome cuidado minha filha”.

- E nem a de nosso pai, Eva. Completava Jacinto, compenetrado em seu raciocínio.


quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Parte I

Chovia pouco naquela tarde, o cheiro que vinha do mato molhado emanava fortemente pelo interior da casa de alvenaria, construída em meio à vasta vegetação da fazenda Umatinga. Atrás da casa passava um rio, o qual podia se ouvir suas águas desabarem por sobre as pedras da cachoeira, escondida a um quilômetro dali por um sinuoso matagal que ao rio beirava às margens. Lugar de um sol ameno na parte da manhã, mas que só não escaldava mais à tarde graças à aragem úmida e gélida da serra. Armando estava sentado à varanda, se balançando na cadeira de seu pai, senhor Batista Dantas, que havia falecido naquele instante.

- Armando! – Corria alardeando Malvina, esposa de seu Rufino, moradores vizinhos de seu Batista. – Seu pai está caído ao pé da cerca! - Num súbito solavanco ascendeu Armando da cadeira, esta colidiu bruscamente à parede de pedra. Correu se desfazendo o fôlego, até que a 300 metros encontra seu pai da forma como enunciara Malvina.

Jacinto estava inconsolável. A mão de Eva agarrada a dele tentava torná-lo da dor, mas na medida em que a terra cobria a imagem rústica e tenaz de seu Batista, que agora se unia em túmulo à esposa, o pranto se fazia mais presente em tão mal-acabado semblante . Armando, de longe, se ria por dentro com a ironia de um Machado, mas como bom ator que era, fazia bem o gênero “sofre solitário”. Tenho certeza que conseguiu enganar muita gente ali, pois contei uns dez que lhe foram prestar os pêsames com sincera ingenuidade, mas Eva...não, essa conhecia muito bem seu irmão.

- Parece não ter se abalado muito com a morte de nosso pai... – Eva não era de guardar o que sentia, e tão logo foi ter com Armando que a olhando com uma sinistra expressão e um meio sorriso, lhe respondeu:

– Não sabe o que sinto, não está aqui para saber. – Apontava a cabeça, guardada pelo belo chapéu preto. Saiu dali e foi direto para seu luxuoso carro esporte, enquanto Eva o olhava ir embora mais uma vez.

- Detetive Dantas!

- Sim? - Ela definitivamente era uma bela mulher. Seu longo e encaracolado cabelo ruivo e a pele alva como a neve, que realçava o delicado lábio rubro, faziam de Eva a mais linda policial de Altaneira, um desejo comum a todos dali.

- Trouxe aqui as fotos que me pediu, senhora.

- Muito bem, Ramos...agora me leve até o corpo, quero vê-lo!

Aparentemente nada levava a crer que se tratava de um homicídio, a não ser a porta que fora arrombada e alguns pertences levados. A vítima, caída à porta da geladeira que se encontrava entreaberta, sem sinal de espancamento ou qualquer ferimento, parecia ter sofrido um ataque cardíaco.

- Eu estava dormindo, e só fui dar conta de que ele tinha saído da cama de manhã cedinho, foi quando o achei assim, meu Deus! Fernandes, não! – Relatava chorosa para Eva a pobre viúva. Disse esta também que o marido fazia consultas regularmente com o médico da cidade, Dr. Boris, a quem Eva foi inquirir.

- Tem certeza? – Pergunta perplexo o doutor.

- Sim! Sua esposa também achou estranho ele ter falecido desta forma. O homem era saudável, e com sua idade, 45 anos, não é comum sofrer de infarto. – Afirmou Eva a Boris.

- Posso lhe garantir que o senhor Fernandes era um homem de saúde invejável.


sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O flagelo dos afectos (resposta a Jaromir)



Prezado Jaromir,


De fato, você está prenhe de razão quando se mostra violentamente contra os vulgarizadores desta prática que, embora ainda seja compreendida por muitos como manifestação de uma "suposta" erudição, tem mesmo sido o solo onde germinam alguns filósofos que se arrogam “funcionários da verdade”. Mas os "maus filósofos" ainda serão aqueles que incorrerão no pecado de não fazer funcionar sua usina de conceitos, tornando-se reféns do pensamento alheio, ou agenciando constructos cujas bordas não coincidem. Neste sentido, antes de ater-me ao que você classificou pejorativamente como “citação”, permita-me fazer uma pequena digressão acerca da utilidade (para o pensador) do aparato conceptual no processo de "fabricação do conhecimento", ainda que me detenha aqui apenas na teoria, na filosofia propriamente, deixando arte e ciência à margem da discussão, por ora. Não é difícil constatar que o próprio Nietzsche, já no século XIX, levantou-se furioso contra este tipo de pensador do qual tratamos acima, que parece “funcionar” somente aparado em próteses de saberes, e cujas engrenagens conceituais parecem não possuir as dobras que lhes signifiquem. Para Nietzsche, com o perdão da citação, “os filósofos não devem mais se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como um dote miraculoso, vindo de algum mundo igualmente miraculoso”. Perceba como o filósofo alemão, recusando a maiêutica socrática, a representação platônica, a “burocracia do pensamento ocidental” e disparando quase contra todos os que lhe antecederam, não prescinde da ferramenta mestra do filósofo: o conceito. Mas como nascem os conceitos? De que estranho mundo ou ermas regiões ele vem? Que estranhos nomes lhes servirão de batismo? Há céu para os conceitos, para que ele nos caia como corpo celeste sobre nossas cabeças que os esperam inteiramente prontos? Devemos nos tornar prisioneiros do conceito para engessar o sentido da razão e não aceitar o “sopro de Hermes” que a muitos conforta? Onde mora em nós a tirania e quem a pratica? Somos nós ou o quê de nós? O que estou tentando dizer é que considero indubitavelmente louvável sua posição de ponta de lança do pensamento, de desbravador ou escrutinador-deflorador da “realidade”, atitude rara de ser encontrada entre pensadores brasileiros, para sempre condenados ao “obrigatório ritual das citações”, que empanturram as folhas de papel de notas de rodapé alusivas a medalhões, produtores de conceitos dentro de circunstâncias e centros inteiramente diversos dos nossos. Portanto, vestir um escafandro ontológico e mergulhar nas profundezas oceânicas do pensamento para violentá-lo e ou gestá-lo exigirá do filósofo um acervo conceitual e um plano que lhe dê existência autônoma. Do contrário, o que será produzido será também enterrado no cemitério do discurso, o que redundará numa “prostituição da língua”, agora reduzida a um “falar mal” que se avizinha à prática do “jornalismo do espetáculo”, (falando como Guy Debord), vazio de conceitos e rico em impropérios que fazem a língua descer às suas regiões de mais baixo nível, agora ficando com Deleuze. O municiar-se de conceitos, seja importando-os de um pensador ou criando-os, servirá para evitar um “planetário de erros” e (re)definir posições. Por exemplo, o que você está chamando de citação, de academicismo, de colagem? (agora estamos retomando a questão). É possível gestar conhecimento sem fazer com que tais palavras efetuem um salto do termo para o conceito. Quando morre o primeiro para nascer o segundo? Serão os jornalistas de espetáculo operários do conceito? Sinceramente, creio na pertinência das suas questões e acredito serem elas necessárias para não reduzirmos o ofício do pensador a uma “fábrica de próteses”. No entanto, há uma pretensão no seu texto que incomoda não pela provocação, mas pela ingenuidade: como é possível escrever um texto sem efetuar colagens e citações? É, objetivamente, possível falar-se em texto genuinamente individual? De quem são os códigos dos quais você se apropria para criar seu discurso? Quando você os inventou? É possível negar que tais códigos fazem parte de um suporte estrutural muito mais complexo do que se pretende chamar de individual, sendo passível de uma inteligibilidade apenas se atreladas às dimensões do cultural e do social, categorias impossíveis de serem pensadas senão apenas na esfera da coletividade? Mikail Bakhtin, Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Umberto Eco, entre outros, há muito já mataram essa charada: todo texto é uma teia de remissões, sejam elas explícitas ou veladas. Barthes chega a usar uma passagem dos evangelhos para simbolizar a pluralidade de vozes que podem emanar de um texto: “legião, porque somos muitos”. Um exemplo emblemático que serve para ilustrar o quanto a própria “literatura pós-moderna” vem tematizando esta questão está num romance que você talvez já tenha lido. Estou falando do famigerado “O nome da rosa”, de Umberto Eco. No romance, não é difícil localizar o lugar do pastiche. O monge detetive chama-se Guilherme de Baskerville - cidade onde se passam diversas histórias de Sherlock Holmes. O discípulo de Guilherme atende pelo nome de Adso, versão latinizada de Watson, nome do companheiro de Holmes (e não nos esqueçamos de que "O nome da rosa" é também um romance policial). A chave para a compreensão da história gravita em torno de um livro, o segundo da Poética de Aristóteles, que se encontra guardado numa biblioteca labiríntica cujo responsável é um monge cego chamado Jorge. Não será difícil depreender que há aqui uma referencia quase explícita ao velho Jorge Luís Borges, que também era cego e escreveu um conto intitulado “A biblioteca de Babel”, sendo também fascinado por labirintos. Os exemplos abundam e prefiro não mais me delongar... O fato é que me solidarizo com suas idéias, embora acredite na necessidade de não mitologizá-las. Gostaria que você continuasse e me enviar suas inquietações. Sinceramente, não conheço ninguém tão instigante quanto você! É provável que eu não concorde com todas as suas posições teóricas, epistemológicas ou heurísticas, mas seguramente eu as admiro.
Abraço afetuoso,
Sr. Allworthy.
PS.: Minhas mais sinceras escusas, meu nobre amigo, recusei-me a escapar do velho tempero acadêmico!
PPS.: Em outra oportunidade, tentarei mostrar como tudo isso pode ser "outra coisa" em se tratando de arte, pensamento mítico e ciência.


A oeste da infâmia (carta aberta)



Querido Allworthy,

poucas coisas me eriçam mais a intolerância do que a <arrogância> típica do pensamento acadêmico, sobretudo a desses velhos manuais estreitos que cheiram ao século xix, prenhes de bacharelismos baratos e palavras escrotas - provérbios de almanaque que mais recendem à medíocres filosofias de gabinete. Sinceramente, eu os quero muito longe de mim, que odeio erudições e citações. Eu prefiro o pensamento absurdamente livre, ou mesmo sem interrupções nem colagens pseudointelectuais. Sendo assim, devo portanto confessar que abomino os escritos que praticam esses vícios imperdoáveis, o que não me impede de lê-los em tempo e circunstâncias hábeis, como venho a fazer com os que o senhor costuma me enviar. No entanto, se muito não for pedir, seria interessente se o senhor me expusesse, de maneira clara e sem o tempero acadêmico que lhe é comum, as razões pelas quais devo ainda acreditar neste pensamento a que me proponho sempre atacar, de modo que eu mesmo me redima desse suposto "pecado" do qual me julga o senhor, a quem devo sempre respeito e admiração. Não lhe posso ter com a mentira, é verdade, eu simplesmente aniquilaria quase toda a nossa "cultura"...

Agradeço antes a resposta,

Do grande amigo,

Jaromir.