terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Parte V

“DR. BORIS DESAPARECIDO”

E a notícia se apresentava desta forma: “O clínico geral Boris Mictian está desaparecido desde a noite passada. Ele fôra visto saindo de seu consultório por volta das dezoito e quinze, como de hábito, e de lá seguiu a caminho de casa, mas a sra. Mictian disse não ver o marido desde sua ida para o trabalho naquela tarde, a treze e quarenta...”. Dizia também o jornal que transeuntes notaram um aspecto visivelmente perturbado no médico, pois caminhava incontinenti e a palidez em sua tez já alva, aludia muito a sua apreensão.

Eva repousava o jornaleco sobre a mesa do café e já se encaminhava à delegacia quando lhe surge à frente Bruna. Tinha algum tempo desde a última vez em que se viram. Bruna se formara dois anos antes na Faculdade Estadual de Farmácia até voltar à Altaneira e trabalhar no ambulatório como auxiliar de Boris. Tinha uma grande admiração por Eva, muito pela beleza, e mais pelo brilhantismo de nossa detetive, nas provas na época do colegial sempre granjeava as melhores notas.

Como já dito nesta narrativa, eram muito amigas, mas o tempo e suas díspares atividades as levaram naturalmente ao distanciamento. Destarte era inesperada uma visita de Bruna à Umatinga, melhor dizendo, à Eva. Dizia estar intrigada com a onda de infartos, queria saber da opinião de Eva.

- Soube do doutor Boris? – Inquiria Eva com uma frieza que notavelmente refletiu no comportamento de Bruna. Esta empalideceu e gaguejou três vezes até conseguir responder.

- Não... Eva, sou suspeita de algum crime?

- Desculpe, essa história está me cansando. – Olhava meigamente para a amiga, numa mescla de saudade e desconfiança. - Está na primeira página do Panacéia, doutor Boris desapareceu.

Caldas ficava a 36 quilômetros de Altaneira, um pequeno distrito onde se encontrava a Ordem das Carmelitas. Beatrice tinha 16 anos incompletos quando resolveu se devotar ao rigoroso claustro da Ordem. A irmã, Bruna, era expressamente contrária à idéia na época, mas depois foi admoestada com freqüência por Beatrice, persuadindo-lhe em reconhecer seus reais votos de renúncia.

- Estou certa de que ela tenha escolhido com muita maturidade seu caminho, mas não queria minha irmã afastada da família assim. – Respondia à Eva sobre o paradeiro de Beatrice enquanto tomava mais um gole de café na padaria. –Lembro-me dela partindo pela janela daquele ônibus, estava firme de sua decisão, e sorriu para mim enquanto eu me derretia em lágrimas por ela.

Beatrice era uma garota que distava muito dos padrões de beleza vigentes. Usava óculos desde os 6 anos devido à miopia, na adolescência adquirira escoliose, talvez acentuada por sua estatura que já aos 14 anos era maior que a de Bruna aos 17. Isso tudo somado a algumas muitas acnes que deformavam seu rosto, rendendo à pobre jovem vários apelidos degradantes, motivo de sua penosa introspecção.

Bruna ouviu de um dos pacientes que o Padre tinha sido assassinado por uma pessoa fantasiada, e que Eva encontrara frascos de fármacos.

- Princípio ativo, Heparina Sódica. - Identificava Eva à amiga. – Além de álcool que utilizou para apagar quaisquer provas de identificação. Não foram encontradas digitais nos frascos.

- Essa coisa sabe muito bem o que está fazendo. – Aludia Bruna à criatura.

- Detetive, encontraram o doutor Boris.


quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Lembranças da Dor


O relógio branco e redondo marcava cinco e quinze da manhã, e as cortinas dançavam à melodia uivante dos ventos. Acordei desprotegido do frio naquela quinta-feira. Meus olhos timidamente descerravam aos raios matutinos. Já tinha dormido pouco na noite passada, as dores não cessavam e agora o Sol me queimava a face gélida. Esqueceram de fechar as janelas. Ficaria deitado ali por mais tempo.

Olhei pro lado e lá estava ela. Eu poderia amá-la? Ela dormia tenramente enquanto minha vista passeava por todo seu corpo jovem. Minha fixação naquele momento por seu seio era algo patológico, a luz lhe mostrava por baixo da fina camisa de algodão. Somente naquela manhã pude perceber de sua beleza, até então era só mais uma que ao meu lado compartilhava dor.

Peguei do espelho na cabeceira da cama, como fazia toda manhã, e percebia quanto o tempo me vinha maltratando, mais choros e soluços, era assim toda manhã.

Lembro do passado, de como eram boas as férias do colégio. Beto levava todos pra passar a primeira semana no sítio de seu tio Valter. Era mágico aquele lugar. Além das verdes matas, a casa tinha um clima nostálgico da época do cangaço, tudo cheirava a couro. Logo na entrada um gibão de vaqueiro ornava a parede da sala. Os tamboretes eram feitos de couro de carneiro, e ficavam na varanda. No quintal, galinhas, patos, capotes, o velho Dog amarrado ao pé da serigüela que latia sem parar à presença de alguém e o melhor de tudo, o peru. Eu me encantava com aquele bicho, era só assobiar que ele respondia, “Aglugluglu” e depois arrastava suas asas pelo terraço. Só mesmo aquele peru pra me tirar uma lasquinha de alegria...

Seu rosto era de uma beleza simples, delineada. O nariz era o que tinha de mais singelo, emoldurado por suas maçãs rosadas. Senti meu coração, algo dentro de mim estava vivo, ascendia um sentimento já há muito esquecido. Olhava saudoso pra aquela jovem. Eu a amaria zeloso, cuidaria de sua ingenuidade, de sua meninice, seria seu amigo, seu pai, seu amante. Foi assim com todas que um dia amei.

Queria que ela ficasse por mais tempo, um sentimento egoísta talvez, mas precisava dela ali do meu lado, eu a queria muito. Sei que iria embora, e deixaria saudade. Só saudade, não doaria um pouco de atenção, não beijaria minha boca enrugada, não sentiria seu corpo nu cair por sobre o meu. Sei, sei, sei! Que tortura!

Minha vida perdia o sentido. A cada oxigênio inspirado, a cada feixe de luz que em minha vista viesse incidir, a cada toque frio da amanhã, a cada unção de dor, era sempre a mesma pergunta: Ainda preciso disso? Tenho que dar fim a essa dor! Não a suporto mais.

Retiro a máscara, insígnia de minguada vida. Asfixia. Enfermeiras tomam meu leito moribundo, era um mar de branco, e em meio a uma onda alva que pendia abaixo a vi acordar. Despedi-me dela pra sempre, desejei-lhe melhoras, que a dor que sentia não fosse da ordem de meu câncer, foi quando vi seu meigo sorriso pela única e última vez.