domingo, 31 de janeiro de 2010

O sacrifício



Tendo a barriga perfurada naquela confusão, demorou a percorrer toda aquela gente. O sangue era mesmo dele e se derramava pelos dedos da mão assustada. Depois de sair da conturbada alameda humana, respirou com dor e medo o ar gélido da noite. Trazia logo consigo o rival. Este bufava e salivava a adrenalina que no praguejar da boca espumava. A alameda agora perfazia um círculo em volta dos gladiadores. Ambos assustados e tendo que dar fim àquilo. No baile da comunidade, começou tem que terminar, do contrário a galera mesmo escolhe a ovelha a ser sacrificada. Depois que a multidão se forma, a coisa tem que ter um fim, e, portanto, ninguém sai dali sem ir às fatais conseqüências.

O medo nos olhos dos dois rapazes era visível. Sabiam que um deles teria um fim definitivo. A multidão percebe e faz a sua parte para agitar os estáticos lutadores, grita apologias viris e viscerais. Mas quem atacaria primeiro? Os pés não se decidiam. A vontade se arrefecia. A cabeça não mais pensava, nenhuma resposta vinha. A faca na mão agora pesava, tinha cheiro de sangue quente e a mesma cor viva do que escorria das mãos do assustado irmão.

Aqueles infelizes escolheram o pior dos momentos para se empenharem numa discussão. A galera não perdoa, é lei e tem que ser executada. O bate-boca inicia quando se encontram no centro do baile funk. Alguém grita, é briga. A multidão vai se afastando. Um amigo em comum e desatento vê que um dos irmãos é ator da briga e solta a faca recém passada no esmeril aos pés deste. O outro tenta chegar antes da faca ser empunhada e consegue retirar o cordão do pescoço do irmão trapaceiro, mas não escapa do perfuro-cortante. Corre com o cordão e o seu sangue nas mãos. Eram egoístas, orgulhosos e vaidosos como qualquer ser humano, mas eram também jovens e tolos. E perder uma aposta sem pagar... era mesmo procurar confusão.

Num ato de desespero os irmãos se abraçam aos prantos. Cena que nunca se havia visto com aqueles dois. Viviam em acaloradas disputas. Consomem minutos preciosos ali para se perdoarem. A multidão grita ritmada; morte, morte, morte... mas a faca desgruda da mão e cai ao chão. A polícia chega, vem subindo o morro. A galera se dispersa aos poucos, o bastante para encobrir o movimento súbito da faca que é fincada nas costas do desistente. Sabia que ao soltar a arma, esta voltaria contra si. Decidiu então ser ele, e não o irmão, a ovelha da vez.