segunda-feira, 24 de março de 2008

De Volta ao Lar


– Então conserva o mesmo cheiro de mofo... – falou consigo Lúcio com os pés no piso de taco da velha habitação. – Onde está você? – esse era o motivo de sua volta àquele lugar.

Lúcio é um senhor estranho... alguém o queria num asilo, um outro o tratava indiferente – Aquele ali! Deve ser Maçom – condenava um decrépito cidadão. Mas uma grande maioria sente que algo ocorrido no passado possa ter a ver com sua autista animosidade. Passado este não compartilhado com os moradores desta região, haja vista Lúcio ter aparecido na cidade ainda jovem, sem lenço, sem documento.

“Bom, ele gosta de ser chamado de Sr. Férrer, mas não existe família aqui perto com este sobrenome. Ele vive sozinho desde muito novo!”, comenta sobre ele um casal contemporâneo seu. Não se teve relatos de algum amor ou aventura com qualquer criatura que seja. Nada se sabe sobre parentes. Ninguém nunca o foi visitar. Não! Nada! Ninguém! – Estranho... – era um coro reflexivo e uníssono da sala onde estávamos.

Não tem amigos, é totalmente auto-subsistente. Tem uma horta, planta arroz e feijão em pequena escala, animais de abate tem vários, dentre galinhas, patos, capotes, até mesmo um pequeno lago donde pesca seus peixes. Raramente compra algo no açougue da cidade.

– Olha senhor, ele sempre faz a mesma coisa todos os dias! Logo depois de fechar a sua locadora de livros (Quando chegou à cidade foi arrebatado por um grande colecionador de livros que faleceu há anos deixando tudo pra ele, inclusive casa e dinheiro em banco. Na época o pequeno Lúcio vivia largado, dizia que não tinha pais, nem família, e por isso, as ruas eram o seu lar. Foi este colecionador que lhe deu cultura e um trabalho de auxiliar na recuperação de livros), umas cinco da tarde, viaja pela mesma estrada. Por aqui tem quatro estradas com destinos diferentes, mas ele sempre viaja por essa mesma, todos os dias. Volta um pouco depois do cair do Sol, coloca a mesma música... um rapaz aqui entende dessas coisas que ele escuta, disse se tratar de um tal Villa Lobos. Mais tarde sai de casa trocando as pernas e com uma garrafa de vinho vagabundo na mão, gritando: ONDE ESTÁ VOCÊ?, repetidas vezes – relatou-me uma afobada senhora.

– E vocês nunca tiveram a curiosidade de segui-lo pra saber o que faz todos os dias naquela estrada? – inquiri os moradores enquanto pegava do cheiroso café distribuído a todos pela representante do grupo, Senhora Nêres, com quem havia eu conversado e negociado minha vinda a esta cidadela. – O seguimos algumas vezes sim! Mas quando chega numa parte fechada da estrada, uma velha linha férrea, ele desce do carro e se embrenha pela mata à dentro. Ninguém nunca teve coragem de entrar na mata, e nossos olhos se despedem dele – conta-me Nêres decepcionada, sentando ao sofá depois de me servir a xícara.

No terceiro dia de trabalho (Passei todos esses dias escondido na casa de Nêres, nosso investigado não poderia saber de mim), Lúcio fôra mais longe. Distanciava-se, e eu não podia o perder de vista. A mata era alta, o que ajudava na camuflagem, mas me deixava com uma comichão dos diabos.

– Então conserva o mesmo cheiro de mofo... – ficou imóvel por um instante, parecia perceber algo. Depois caminhava de um lado para outro da casa. – Onde está você? – estava ele eufórico. O cheiro de mofo era irritante. Pra segurar o escape de um espirro, fechei as narinas ao passo que também meus olhos incontinenti, o bastante para o perder de vista... – Então aí está você! Esperei bastante por este momento – Lúcio estava a minha frente. Não era mais aquele velho enterrado num mausoléu profundo de angústia e sofrimento confino, a isto dava ares de vitória e uma felicidade expressivamente doidivanas no olhar, um brilho macabro e, ao mesmo tempo, a mim familiar.

Endereço-lhe meu indicador confuso e trêmulo – Eu conheço o senhor, Sr. Férrer... – a meio caminho titubeio entre pergunta e afirmação. – Sim, sabes bem quem sou, não tenho dúvida alguma! E sabes também que não foi o acaso que o trouxe até mim. Livre arbítrio, este sim o trouxe – Nunca senti um embrulho no estômago como o daquela noite quando de sua investida em me fazer lembrar: – Velha estalagem, piso de taco... O cheiro de mofo... Sinta! – Uma pausa em sua fala e... – Onde está você? Diga! – As lembranças me vêm – Meu Deus! Não... eu sonhei com isto... – contrição e lágrimas me tomam num desesperador momento. Um grande pesadelo de minha infância, trauma apagado da lembrança até então, trazido à tona. Concreto, real!

– Sim! Onde estás agora, a velha estalagem, já estiveste antes! E não! Não era um pesadelo. Contenha-te! Sabes de tua culpa!

– Eu era apenas uma criança! Como um garoto de nove anos pode ser responsável por seus atos? Isso não é justo! Não...

– Justiça? O que sabes de justiça? Tenho julgado os homens por toda minha existência! Não eis tu de entender os desígnios de Javé! Teu destino esteve o tempo todo em tuas mãos! Ele vos deste isto, livre arbítrio! Sentes o cheiro? Sei que sentes... Toda uma família, tua família... Cruel foi seu destino. Não negues de maneira alguma tua natureza! Queimaste todos enquanto dormiam e os enterrara sob este taco mofado para que não sentissem o cheiro da carne queimada... Carne de tua carne! Sangue do teu sangue! Agora teus restos farão compania aos deles.

– A cidade... É ilusão? Também tínhamos horta em casa! Meu pai adorava livros, tinha muitos. E Villa Lobos?! As Bachianas... ele ouvia sempre! O vinho... era a bebida preferida de minha mãe! Fez tudo isso pra que eu lembrasse, senhor Lúcio Férrer?

– Certamente que sim! Mas, por favor, podes me chamar de Lúcifer!