segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Discurso


Só tenho questionamentos, minha gente. Não tenho porque dar explicações de algo que na verdade não tenho domínio algum. Cada pessoa aqui tem seu juízo sobre as coisas. Por que serei eu o revelador de algo que só posso questionar a veracidade? Já falei muitas e muitas vezes que só me pronuncio quando achar que tenho a ilesa certeza do que estou fazendo. Se até o presente momento ainda não o fiz, foi por motivos que certamente revelarei a todos, mas esperem pelo meu tempo, é só o que lhes peço. Não me obriguem a ser chato com ninguém aqui. Gosto muito de todos, mas temos que ter o discernimento de que cada um tem seu tempo, e sua forma de conduzir as coisas. Às vezes um líder tem que ser firme e não deixar que as emoções o dominem nas decisões, nas informações passadas, dentre outros aspectos do relacionamento com seus liderados. Certas coisas não são ditas para preservar o ambiente de convívio, nem tudo precisa ser dito. Para cada informação dentro de um grupo, existe sua forma de tratamento. Da forma que for repassada, ou tratada, pode influenciar fortemente o norte desse grupo. Então meu povo, quero esta compreensão. Quero que saibam, podem confiar em mim, pois nunca contradisse nem mesmo uma sílaba que possa ter acidentalmente escorregado de meus lábios, quanto mais desonrar o que firmei com os amigos presentes. Posso parecer moralista, e talvez até um sádico que adora ouvir o tom cênico de sua voz, mas garanto que este pensamento macula com força vil tudo que pude agregar ao meu caráter, tudo que conquistei, principalmente por influência de amigos, amigos muitos aqui presentes, e estes sim, estão sendo atacados injustamente quando me apontam o dedo acusador, por isso que não tenho receio algum em reprovar a atitude de quem agora vem me acusar, pois fere com punhal peçonhento a quem muito prezei , os meus amigos. Não tenho outro adjetivo para contra-atacar tais incriminações senão a pior das palavras, esta que costuma surgir para figurar os ímpios, os egoístas, seres desumanos que canibalizam sua gente em favor unicamente de si, falo da palavra “traidor”. Sim, pra mim quem me questiona o caráter, pode estar pondo à prova o seu próprio, é um traidor, pois sofri sua influência, e quando me condena a probidade, estará traindo a mim, mas também o grupo, além de si próprio, inexoravelmente provocando um suicídio coletivo. No meu peito pulsa a ideologia de cada ser que meus limitados, mas firmes olhos possam mirar neste lugar. Daí eu entender que tudo que eu possa repassar, ou não, é pensado no que fariam os amigos, a partir desta análise executo minhas decisões. Se depois de tudo que falei ainda restarem especulações, discordâncias, deturpações incongruentes com o bom andamento das coisas, garanto que terei de cortar a traição na própria carne, digo própria carne pois sinto que temos muito mais em comum que alguns aqui possam julgar irresponsavelmente que não. Apesar de nossas diferenças hierárquicas no seio do negócio, somos seres que buscamos sempre o que é de melhor para nós e para os nossos, e para isso, muitas vezes temos que ir de encontro ao que achamos ser certo no momento, mas acatamos para que o grupo tenha direção a seguir. Mais tarde o que poderia ser um caminho torto se mostra a solução, talvez não, pode ser que nos guie para outros desígnios, mas um grupo com abertura para o diálogo saberá descerrar a melhor porta de saída. Somos o que decidimos ser, se queremos ser um grupo aberto ao diálogo, sugiro que comecemos esse diálogo hoje mesmo, e aqueles que estiverem contra ao que expus nessa apoucada fala, sugiro que decretemos solenemente seu suicídio social e, conseqüente, desligamento do grupo. Obrigado a todos nós!

quarta-feira, 3 de março de 2010

A mancha



Jorge fixou os olhos nas listras pretas paralelas que manchavam a parede. Sentado ao banquinho de couro enquanto os outros conversavam trivialidades, ele ficava ali, concentrado na figura. Tentou entender a origem daquilo. Talvez alguém tenha deixado a sola do sapato encostar na superfície enquanto descansava. Uma criança poderia ter desenhado à mão ao tempo de uma mãe distraída. Ainda poderiam ser os dedos sujos e relaxados de algum mendigo, talvez.


O certo é que eram três listras negras e paralelas... não de um paralelo perfeito, mas com alusão. Em meio a uma parede branca neve, uma mancha daquelas surgia com grande afronta para Jorge. Era como roubar a mãos gatunas a imponente coroa de um rei. Como a má fortuna abortiva retirar da mãe seu rebento.

Não podia Jorge conceber que alguém teria feito aquilo de própria vontade. Ninguém seria tão desprezível, tão vil que seria capaz de tramar um crime estético de tamanha proporção. Mas talvez fosse. A pesar de a figura ter pouco mais de dez centímetros de altura por sete de comprimento, insignificante frente à parede de quinze metros de comprimento por dois e meio de altura, causava em Jorge um imenso desconforto.

Os outros começaram a perceber que Jorge não estava bem. Sua pele antes alva tomava a cor de farelo de urucum. Seus olhos arregalados e ferozes sintonizavam-se ao nariz e testa franzidos. Os lábios se espremiam cada vez mais até que não mais suportou. Entrou em casa, demorou-se uns trinta segundos até aparecer novamente segurando uma marreta.

Tentaram o segurar, mas Jorge e sua ira estavam resolutos, nada podia pará-los. Arrastou uns três que se agarraram ao seu pescoço, e em dois empurrões laterais derrubou-os todos. Com as mãos firmemente seguras à marreta desferiu vários golpes à parede até que a estrutura veio abaixo. Ao fim, empoeirado, sem forças e com o suor a derramar pelo corpo ferido, Jorge chora inconsolado. Sentado sobre os tijolos, após segundos de perplexo silêncio, diz aos soluços: Podem manchar minha parede, mas não mancharão minha honra!


domingo, 31 de janeiro de 2010

O sacrifício



Tendo a barriga perfurada naquela confusão, demorou a percorrer toda aquela gente. O sangue era mesmo dele e se derramava pelos dedos da mão assustada. Depois de sair da conturbada alameda humana, respirou com dor e medo o ar gélido da noite. Trazia logo consigo o rival. Este bufava e salivava a adrenalina que no praguejar da boca espumava. A alameda agora perfazia um círculo em volta dos gladiadores. Ambos assustados e tendo que dar fim àquilo. No baile da comunidade, começou tem que terminar, do contrário a galera mesmo escolhe a ovelha a ser sacrificada. Depois que a multidão se forma, a coisa tem que ter um fim, e, portanto, ninguém sai dali sem ir às fatais conseqüências.

O medo nos olhos dos dois rapazes era visível. Sabiam que um deles teria um fim definitivo. A multidão percebe e faz a sua parte para agitar os estáticos lutadores, grita apologias viris e viscerais. Mas quem atacaria primeiro? Os pés não se decidiam. A vontade se arrefecia. A cabeça não mais pensava, nenhuma resposta vinha. A faca na mão agora pesava, tinha cheiro de sangue quente e a mesma cor viva do que escorria das mãos do assustado irmão.

Aqueles infelizes escolheram o pior dos momentos para se empenharem numa discussão. A galera não perdoa, é lei e tem que ser executada. O bate-boca inicia quando se encontram no centro do baile funk. Alguém grita, é briga. A multidão vai se afastando. Um amigo em comum e desatento vê que um dos irmãos é ator da briga e solta a faca recém passada no esmeril aos pés deste. O outro tenta chegar antes da faca ser empunhada e consegue retirar o cordão do pescoço do irmão trapaceiro, mas não escapa do perfuro-cortante. Corre com o cordão e o seu sangue nas mãos. Eram egoístas, orgulhosos e vaidosos como qualquer ser humano, mas eram também jovens e tolos. E perder uma aposta sem pagar... era mesmo procurar confusão.

Num ato de desespero os irmãos se abraçam aos prantos. Cena que nunca se havia visto com aqueles dois. Viviam em acaloradas disputas. Consomem minutos preciosos ali para se perdoarem. A multidão grita ritmada; morte, morte, morte... mas a faca desgruda da mão e cai ao chão. A polícia chega, vem subindo o morro. A galera se dispersa aos poucos, o bastante para encobrir o movimento súbito da faca que é fincada nas costas do desistente. Sabia que ao soltar a arma, esta voltaria contra si. Decidiu então ser ele, e não o irmão, a ovelha da vez.