quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Lembranças da Dor


O relógio branco e redondo marcava cinco e quinze da manhã, e as cortinas dançavam à melodia uivante dos ventos. Acordei desprotegido do frio naquela quinta-feira. Meus olhos timidamente descerravam aos raios matutinos. Já tinha dormido pouco na noite passada, as dores não cessavam e agora o Sol me queimava a face gélida. Esqueceram de fechar as janelas. Ficaria deitado ali por mais tempo.

Olhei pro lado e lá estava ela. Eu poderia amá-la? Ela dormia tenramente enquanto minha vista passeava por todo seu corpo jovem. Minha fixação naquele momento por seu seio era algo patológico, a luz lhe mostrava por baixo da fina camisa de algodão. Somente naquela manhã pude perceber de sua beleza, até então era só mais uma que ao meu lado compartilhava dor.

Peguei do espelho na cabeceira da cama, como fazia toda manhã, e percebia quanto o tempo me vinha maltratando, mais choros e soluços, era assim toda manhã.

Lembro do passado, de como eram boas as férias do colégio. Beto levava todos pra passar a primeira semana no sítio de seu tio Valter. Era mágico aquele lugar. Além das verdes matas, a casa tinha um clima nostálgico da época do cangaço, tudo cheirava a couro. Logo na entrada um gibão de vaqueiro ornava a parede da sala. Os tamboretes eram feitos de couro de carneiro, e ficavam na varanda. No quintal, galinhas, patos, capotes, o velho Dog amarrado ao pé da serigüela que latia sem parar à presença de alguém e o melhor de tudo, o peru. Eu me encantava com aquele bicho, era só assobiar que ele respondia, “Aglugluglu” e depois arrastava suas asas pelo terraço. Só mesmo aquele peru pra me tirar uma lasquinha de alegria...

Seu rosto era de uma beleza simples, delineada. O nariz era o que tinha de mais singelo, emoldurado por suas maçãs rosadas. Senti meu coração, algo dentro de mim estava vivo, ascendia um sentimento já há muito esquecido. Olhava saudoso pra aquela jovem. Eu a amaria zeloso, cuidaria de sua ingenuidade, de sua meninice, seria seu amigo, seu pai, seu amante. Foi assim com todas que um dia amei.

Queria que ela ficasse por mais tempo, um sentimento egoísta talvez, mas precisava dela ali do meu lado, eu a queria muito. Sei que iria embora, e deixaria saudade. Só saudade, não doaria um pouco de atenção, não beijaria minha boca enrugada, não sentiria seu corpo nu cair por sobre o meu. Sei, sei, sei! Que tortura!

Minha vida perdia o sentido. A cada oxigênio inspirado, a cada feixe de luz que em minha vista viesse incidir, a cada toque frio da amanhã, a cada unção de dor, era sempre a mesma pergunta: Ainda preciso disso? Tenho que dar fim a essa dor! Não a suporto mais.

Retiro a máscara, insígnia de minguada vida. Asfixia. Enfermeiras tomam meu leito moribundo, era um mar de branco, e em meio a uma onda alva que pendia abaixo a vi acordar. Despedi-me dela pra sempre, desejei-lhe melhoras, que a dor que sentia não fosse da ordem de meu câncer, foi quando vi seu meigo sorriso pela única e última vez.



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